24 de julho de 2014

Como Falar Com os Mortos

"Não quero atingir a imortalidade através de meu trabalho. Quero atingi-la não morrendo."
- Woody Allan


Durante a idade média alguns curiosos desejosos de entrar em contato com os falecidos seguiam uma receita curiosa. Profanavam um túmulo e derramavam sobre o cadáver a gordura e sangue fresco de algum animal. Um pedaço do corpo era levado e e misturado a um certo conjunto de ervas que era cozinhado por horas. Algumas hóstias roubadas eram acrescentadas a mistura e criava-se um unguento que era colocado sob os olhos, mãos e peito de alguém.
Essa pessoa visitava novamente o cemitério e passava a noite chamando o nome do morto até que ele aparecesse. Agora, por mais divertido que fosse nunca soube de alguém que obteve sucesso com essa receita bizarra. Existem formas mais práticas e seguras de chamar os mortos e é sobre isso que fala este artigo.

Existem lugares onde poucas pessoas vão. Talvez por medo, talvez por ignorância. Neles os mortos aguardam com paciência infinita o dia em que serão lembrados. Enfileirados lado a lado, seus restos repousam velados num ambiente silencioso onde com esforço é possível ouvir sussurros daquilo que fizeram e falaram durante suas vidas. Vez por outra alguém assopra o pó de seus receptáculos e lê os nomes de uma época que já se foi. Vez por outra alguém abre estes receptáculos e tem acesso direto a suas essências. Quando isso acontece é como se eles voltassem a vida por alguns instantes. Mas poucas pessoas hoje frequentam  bibliotecas.

Sejamos práticos. A única maneira razoável de erguer um morto de sua tumba é conhecer e viver aquilo que ele viveu. Neste sentido é razoável supor que o Nazareno realmente voltou dos mortos quando seus apóstolos resolveram levantar a bunda do cenáculo e começar a espalhar sua palavra. Se sabemos que existem hoje milhares de imitadores do Elvis, repetindo suas roupas, gestos e canções não mentimos ao dizer que Elvis Não morreu.

Qualquer fantasia de vida após a morte se torna irrelevante diante do fato de que mesmo aqueles que morreram só têm vida quando se manifestam em termos mundanos.  Mesmo a igreja católica reconhece isso, pois só canonisa um santo se alguém alegar algum milagre terreno. Um Agostinho que importa é um Agostinho que fala ou escreve pelas mãos de médiuns vivos, pois a vida é a única interação que temos a com a vida. Um imortal é aquele que de alguma forma cria em vida um nome que dura mais que seu próprio corpo por meio de grandes ideias e grande feitos. Aquiles, Saladino, Gandhi estão mais vivos do que nunca.

É claro que todos temos entes queridos e que o amor que vivemos com eles é mais importante para nós do que todos os feitos dos grandes
conquistadores do passado. Neste sentido temos o poder de os ressuscitar ao rir novamente do que rimos juntos, ao lembrar do que conversamos e sentir mais uma vez o que sentimos por eles e com eles. O pai e a mãe não morrem enquanto o filho vive dignamente aquilo que com eles aprendeu. Quanto aos que nada nos fizeram de bom ou memorável, eles já eram desinteressantes enquanto bebiam e comiam que sejam, pois que sejam esquecidos debaixo de suas tumbas.


Ne(o)cromancia: o Comitê dos Mortos


Estes conceitos são interessantes introdutórios e de certo valor filosófico, mas sozinhos não possuem muita utilidade em termos de prática mágica. Independente de existir ou não vida após a morte os magistas desde a antiguidade invocaram os mortos para os mais diversos fins. Não é só porque o satanista tem uma visão materialista do mundo que ele não pode fazer o mesmo. Não importa se você julga ser impossível a vida após a morte. Não se incomode também se você acredita em reencarnação e o seu falecido já ter reencarnado sendo impossível a comunicação. A câmara ritual é justamente o local onde vivemos o impossível fazendo-o possível enquanto nos for útil.

Para isso iremos criar um Comitê dos Mortos que servirá como um poderoso corpo consultivo para decisões importantes que o mago precise fazer e que exijam uma abordagem sob diversos pontos de vista. Trata-se de uma extrapolação de um exercício psicológico desenvolvido por Andrew Carnegie, o rei do aço nos Estados Unidos. Tal me foi ensinado por Lord Ahriman, fundador da Igreja de Lúcifer e isso somei-o certos insights de necromancia da obra de Eliphas Levi. Como qualquer operação mágica da qual escrevo, esta também foi testada pessoalmente e só a passo adiante  depois de evidenciar seu sucesso.  Essencialmente formaremos um comitê de grandes personalidades mortas que poderá ser invocado em conjunto sempre que o satanista quiser resolver um problema ou vencer um desafio de grande importância.


Escolhendo os seus defuntos


Só existem dois requisitos para fazer parte do seu Comitê dos Mortos: ser alguém importante para você e estar morto. Em outras palavras, podemos estar falando de seu bisavó ou de Maomé, mas não do atual presidente dos Estados Unidos. Faça uma lista de 10 personalidades históricas que você gostaria de ter como conselheiros. Pense em pessoas significativas que realmente possam colaborar com você. Feito isso refine sua lista eliminando metade dos nomes até restarem apenas 5. É importante formar um grupo eclético de preferência com algumas personalidades de opiniões e temperamentos opostas uns aos outros. Como no exemplo abaixo coloco minha lista onde Lao Tzu e Sun Tzu são praticamente opostos um ao outro na forma como viam o mundo:


Anton LaVey
Lao Tzu
Nikola Tesla
--------------------
Sun Tzu

O penúltimo nome preferi omitir por razões pessoais. Note que para ser um bom morto é necessário que em algum momento tenha se estado vivo. Por isso, e por bom senso eu deixo de fora do comitê personalidades ficcionais e mitológicas. Nada de Arcanjo Miguel ou Fada dos Dentes no comitê. A razão disso é que estes seres, embora tenham egrégoras fortes não possuíram o privilégio da vida. Não passaram pelas dores e prazeres do corpo de carne e portanto não são qualificados para dar conselhos aos satanistas. Outra razão é que seres míticos como Satã ou Jesus Cristo são absolutos demais para fazer parte de um corpo consultivo, pois são símbolos representando forças essenciais. E não há argumentos contra o Amor ou Ódio. Você pode falar com Deus e o Diabo em outra ocasião se quiser, mas recomendo fortemente que mantenha o clube dos mortos fechado apenas para seres humanos.

Por fim, não se preocupe em deixar alguém importante de fora. Com o tempo você pode trocar um membro por outro até encontrar um time de desencarnados que lhe agrade profundamente. Existe ainda uma vantagem adicional no método que passarei a seguir. Adeptos mais sensíveis as impressões sutis notarão que não se trata de um mero artifício psicológico e que resultados importantes começarão a se manifestar. Ao mesmo tempo os adeptos cruelmente céticos terão aqui uma oportunidade enriquecedora para ampliar sua cultura geral e imaginação.


O Memorial dos Mortos


O trabalho completo de formação do Comitê dos Mortos dura cerca de seis meses. Um tempo razoavelmente longo para a geração que acha que consegue resolver tudo ejaculando em cima de um sigilo. Quem já passou desta fase, possuindo disciplina o bastante perceberá que o tempo investindo na prática não será desperdiçado. Cada um dos cinco falecidos selecionados passará por um mês de invocação.

Para o mês de dedicação é necessário criar em seu altar ou em algum canto especial da cada um pequeno santuário contendo um retrato do falecido coberto com um pano negro e uma vela negra que deve ser mantida acessa e trocada constantemente. No caso de pessoas próximas ou parentes será proveitoso também manter no altar algum objeto pertencente a pessoa durante sua vida, sendo que o melhor seria uma veste original do mesmo.

Durante este mês, escolha um dia específico da semana a ser definido por você. Neste dia, a meia noite isole-se junto do altar usando apenas a luz da vela como iluminação. Retire o pano que cobre o retrato e saúde o falecido com palavras que lhe seriam agradáveis e reconhecíveis conforme sua cultura e idioma.  Se desejar coloque uma música ao gosto do falecido, acenda um incenso ou espalhe um perfume que o agradava. Fique em sua presença por cerca de uma em silêncio e meditação sobre sua vida.  Por fim despeça-se, cubra o retrato e parta.

No restante do tempo disponível você deve se dedicar a tornar-se um verdadeiro especialista na vida e ensinamentos desta pessoa. No caso de entes queridos isso se reflete em relembrar os momentos e lições que viveram juntos, todos os dias com grande intensidade. Para personalidades históricas leia suas biografias e domine ao máximo que puder suas obras. O objetivo é inundar-se com o espírito do falecido.

As duas práticas citadas acima são complementares. Nenhuma é mais importante do que outra a ponto de ser negligenciada e em conjunto possuem uma força considerável.  Ao término de  um mês de dedicação, na última meia noite do último dia convide o espírito do falecido a servir-lhe de guia. Use suas próprias palavras, mas respeite os usos e costumes que o morto tinha em vida. Como destacou Eliphas Levi em Dogma e Ritual da Alta Magia: "Nunca seria possível evocar Voltaire, recitando orações do gosto de Santa Brígida. Para os grandes homens dos tempos antigos é preciso dizer os hinos de Cleanto ou de Orfeu."

É importante estar atento a impressões sutis neste momento. Se por algum motivo você perceber uma manifestação de tristeza ou desaprovação por parte do morto, será preciso fazer alguma espécie de concessão que lhe agrade, ou seja, abdicar de alguma prática ou costume que talvez ofenda suas crenças.

No mês seguinte repita o processo com outro espírito, escolhendo um dia diferente da semana. A partir de agora você estará apto a consultar o primeiro falecido do seu comitê dos mortos. E no final de cinco meses terá seus cinco espíritos disponíveis para a consulta.


A Consulta ao Morto


A Consulta do falecido deve ser feita sempre no mesmo dia da semana que lhe foi selecionado durante o mês de dedicação. No dia escolhido deve se manter o jejum a partir do momento em que o sol nascer. Durma cedo e evite qualquer atividade muito empolgante. Prepare o altar como das outras vezes e inclua nele um lápis ou caneta e um caderno que será usado exclusivamente para estes propósitos.

A meia noite, diante do altar e do retrato, fará uma breve e pequena refeição. Sobre esta questão, R.C.Zarco, dileto amigo, me aconselhou seguir a melhor tradição da necromancia latino-americana, ou seja, alimentar-se neste momento da comida favorita daquele a-se-invocar. Na hipótese de não existirem registros de qual seria a comida preferida do cadáver que se venha a invocar, podemos apenas aconselhar o bom uso da imaginação com entendimento. Por exemplo se você for invocar Confúcio, não encontrará nos "Analectos" nenhuma informações sobre o alimento favorito do filósofo. Mas sabemos que Confúcio foi um chim. Logo buscaremos uma comida chinesa comum à época dele como, por exemplo, macarrão com legumes e molho de soja. A pesquisa biográfica do morto deve sempre ser acompanhada de um estudo da cultura onde este floresceu para deste modo encontrarmos pistas do melhor alimento conectado ao espaço-tempo em que ele viveu.

A comida e bebida devem é claro deve ser compartilhadas com o morto. Apenas uma única vela deve servir de iluminação. A termino da refeição, deve se manter um período de silêncio. Após isso, de olhos fechados poderá chamar em voz alta e amigável o nome da pessoa. Ainda de olhos fechados faça mentalmente as perguntas e indagações que gostaria de fazer.

Abra os olhos e escreva no caderno as mesmas questões e dúvidas que elaborou mentalmente.  Coloque-se então em um estado de absoluta receptividade. Seja este estado de receptividade completa e encarne o falecido na medida de suas possibilidade. Não force nada. Tão pouco ofereça resistência.  Neste momento três coisas podem acontecer:

i - As respostas começarão a aparecer sutilmente na sua mente.
ii - A resposta pode surgir de forma clara e súbita.
iii - Você sentirá um impulso ou mesmo um movimento involuntário nas mãos para escrever a resposta.

Mesmo se a resposta vier apenas por meio de uma mensagem mental escreva-a descrevendo em seu caderno logo após a pergunta. O mero ato da escrita é por si só um ato mágico. Não julgue a resposta na medida que ela chegar, apenas lhe dê livre expressão e ao terminar feche o caderno. Também não se dedique neste momento a interpretar as respostas recebidas. Quando estiver satisfeito despeça-se novamente do morto. Deixe o altar montado, mas cobrindo o retrato. Volte a dormir e deixe qualquer ritual de banimento para a manhã seguinte. Outras impressões adicionais poderão aparecer durante o sono ou posteriormente quando você reler a pergunta e a resposta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário