20 de março de 2012

Belas e Mortais: As Famosas Sereias

As sereias e outros seres fantásticos, antropomórficos ou não, fazem parte do imaginário popular mundial. Aparecem nas mais diversas culturas do mundo. Seus mitos são muitos antigos. Tal como os Anjos, as sereias são seres que qualquer pessoa reconheceria facilmente mas que dificilmente serão vistos realmente, por alguém.

Existem relatos e representações milenares porém registros atuais, simplesmente, inexistem. Nesta pós-modernidade e bem antes disso, desde o fim do século XVIII, apesar da incredulidade de cientistas ortodoxos, pesquisadores têm fotografado fantasmas, ou ao menos, o fenômeno da exsudação de ectoplasma e, ainda, filmado OVNIs e outros objetos voadores não identificados, supostos Ietis [ou Yetis, Pé Grande] ou mesmo o Monstro de Loch Ness. Não há fotos de sereias e tritões [sereais masculinas].


Mas, diferente dos anjos, as sereias não se relacionam a nenhuma doutrina ou mesmo metáfora teológica que explique sua existência. Não há um texto de referência histórico nem dogma da sereia de nenhum tipo. As sereias são criaturas ambíguas. Boas e malignas, aliadas ou inimigas da raça humana, elas aparecem nas tradições orais do folclore de diferentes povos e habitam igualmente o mundo das artes de todas as épocas, onde inspiram pintores, escultores, escritores de ficção, cineastas.

Ninguém sabe de onde saiu a idéia da existência de sereias [e também homens-marinhos, aquáticos]. Homens e mulheres-peixe são, talvez, uma fantasia inevitável. A Humanidade tem povoado os oceanos e os céus com criaturas híbridas, antropomórficas mas dotadas de atributos próprios do meio onde transitam: águas, ar, fogo.

A mente cria o desconhecido a partir do familiar: assim são concebidos os híbridos, cuja morfologia apresenta uma combinação de seres conhecidos. Esfinges, centauros, sátiros, são parentes das Sereias. No caso das Sereias [e tritões], é possível que sua origem seja o reflexo de algum tipo de memória ancestral do desenvolvimento evolucionário vida, em si mesma e da espécie humana.

Línguas

Freqüentemente sabem falar línguas das culturas humanas com que convivem ou conviveram no passado, mas entre eles falam línguas baseadas em assobios e estalidos, semelhantes aos dos golfinhos, que são incompreensíveis e em parte inaudíveis para os humanos, pois baseiam-se parcialmente em ultra-sons.

Deuses & Demônios


Os mesopotâmicos foram mestres da hibridização. Criaram figuras diversas e não somente cruzamentos peixe-humanos mas, também, as mais exóticas criaturas: peixe=carneiro, homem-escorpião, homem-leão, serpente-dragão, por exemplo.

Na Mesopotâmia a investigação arqueológica encontrou gravuras em pedra e esculturas que mostram homens-peixes [e só ocasionalmente, mulheres-peixe]. Porém, estes híbridos mesopotâmicos não são representados do modo mais conhecido atualmente, como seres metade peixe, metade gente em uma atmosfera lúdica, de fantasia. Não aparecem em paisagens aquáticas. Assemelham-se a homens vestidos ou caracterizados como peixes, retratados em ambiente civilizado e ocupando posições de destaque na sociedade.

Usam mantos que imitam o peixe, ainda que alguns mostrem a pele escamosa. Os híbridos da antiga Mesopotâmia são escribas e sacerdotes. Outros, são entidades sobrenaturais: demônios e deuses. Destes, que seriam entes sobrenaturais, o ícone mais representativo e historicamente é Oannes. Um tipo de personagem arcano, misterioso fundador e instrutor da civilização. Oannes é representado com o corpo de peixe, cabeça e pés humanos. Segundo a tradição, Oannnes saiu do mar para ensinar aos Homens as artes e ciências da civilização, como a agricultura, a a arquitetura etc..


Ancestrais
Harpias, Sereias Com Asas



Gravura de Matthius Merian. Uma Harpia, em Ulisses
Aldrovandi's Monstrorum Historia, Bologna, 1642.




Os textos gravados nas tábuas de argila da Mesopotâmia são fragmentados e, por isso, a figura de Oannes permanece um mistério. Porém, é possível deduzir que Oannes faz parte de um universo ou mundo paralelo ao mundo humano. Este outro mundo é habitados por seres sobrenaturais. Amigáveis, como Oannes, ou hostis, todos estes seres podem ser entendidos como deuses e demônios.

Os entes femininos aquáticos mais destacados da mitologia grega são as Oceanídeas, as Náiades e as Nereidas. São descritas como figuras afáveis. Ocasionalmente, são representadas montadas em golfinhos.

Existem ainda os masculinos Typhon [ou Tifão], Oceanus [filho de Uranos e Gaia, Céu e Terra. Oceanus era o mais velho dos Titãs e Aqueloo, deus do rio homônimo, filho de Oceanus e Tétis. [Hoje o rio Aquelôo é chamado Aspropótamo e é o maior rio da Grécia. Na verdade Oceanuse Tétis, ela também uma Titânia, juntos, geraram três mil rios e três mil Oceânidas [ninfas do mar].

Aquelôo é considerado o pai das sirenes, sirenias ou sereias porém há controvérsias. Outra versão diz que as Sereias são filhas do deus marinho Fórcis. Estas sereias têm um mito repleto de peripécias. Elas seriam quatro mas somente os nomes de três delas é mencionados: Lígia, Leucósia e Partênome. Em sua origem eram pássaros com cabeça de mulher que habitavam uma ilha do Mediterrâneo. Malignas, tinham um canto melodioso que atraía os marinhos até que suas naves se chocassem contra os rochedos. Ou seja, as sereias que assombram os marujos não são híbridos mulher-peixe.

A mais conhecida aparição de Sereias é relatada por Homero, na Odisséia. O herói, Ulisses [ou Odisseus] sabe que ouvir o canto das Sereias é fatal: os marinheiros enlouquecem e se atiram no mar. Prevenido, Ulisses providencia que todos os marujos tapem seus ouvidos com cera. O próprio Ulisses, ordenou que o amarrassem a um mastro. Deste modo, todos escaparam do melodioso chamado da morte. Sobre as Sereias, Homero diz apenas que elas habitam um prado florido cercado pelas ossadas de suas vítimas. Homero não faz referência a atributos de peixe.

Nos vasos gregos e murais romanos, as sereias são representadas como mulheres pássaro. Às vezes, somente com a cabeça humana, outras, humanas até a cintura, dotadas de tronco feminino e braços, necessários para tocarem seus instrumentos musicais. Na condição de pássaros, correspondente ao mito grego mais antigo, as Sereias-Sirenes se confundem com as Harpias, filhas da famosa Electra com Taumante [divindade das nuvens, dos vapores e da chuva]. Também chamadas raptoras, as Harpias são três: Aelo, Ocípite e Celen. Os nomes significam, respectivamente: Borrasca, Vôo Rápido e Obscuridade. Raptavam principalmente crianças e almas. [ANDRADE, 1973]*.

* ANDRADE, Maria Soares de. Dicionário de mitologia greco-romana. São Paulo: Abril Cultural/V.
Civita, 1973.



BESTIÁRIO MEDIEVAL

A Sereia habitante das águas, híbrida mulher-peixe, somente se tornou uma figura comum já na Era Cristã. A forma graciosa tornou-se a mais usual e não corresponde a nenhuma lenda ou tradição de referência: a crença é de elas estão lá, em algum reino habitado por seres fantásticos. Todavia, a remota ligação com as macabras Harpias deixou sua marca: a beleza das sereias é ao mesmo tempo uma armadilha e uma alucinação. São poderosas e perigosas com suas maneiras sedutoras e sua arma mais terrível, o canto. Seus adereços característicos, o espelho e o pente, revelam, ainda, a sensualidade e vaidade das Sereias.

Nos Bestiários Medievais, embora a origem clássica grega das Sereias seja, eventualmente, mencionada, elas são figuradas como mulheres-peixe. Às vezes aparecem elementos arcanos originais, como asas, além da cauda pisciana e/ou, ainda pés de pássaros e escamas. Apesar dos atributos malignos, as sereias estão presentes nas Iluminuras que decoram as margens de antigos pergaminhos cristãos, como personagens integrantes de esculturas e murais que adornam as igrejas.

Isso pode parecer [e  ̶  é] moralmente deslocado no contexto da religiosidade cristã, tanto mais que as sereias exibem os seios nus, porém no imaginário medieval, o simbolismo grotesco e obscuro das imagens de entidades pagãs eram uma arte justificada com o suspeito argumento de fornecer informações profiláticas aos fiéis.

As sereias dos Bestiários e outros manuscritos medievais desempenhavam duas funções básicas: 1. Mostrar a bondade e a riqueza da Criação de Deus; 2. personificar os pecados mortais, as tentações da carne e a vaidade como pecado corporificado na beleza, no espelho e no pente, os inseparáveis objetos característicos da imagem contemporânea das sereias.


      DETALHE ▲  Mappa Mundi, Hereford Cathedral, Inglaterra.

    Este mapa medieval data do século XIII, anos 1200 da Era Cristã.


No alvorecer da Idade Moderna, durante o chamado Ciclo das Grandes Navegações, mapas, cartas marítimas, eram ilustradas com a figura da sereia já estilizada como um ser aquático. Como neste Mappa Mundi, Hereford Cathedral  ̶  Inglaterra.


Naqueles mapas, a sereia era o signo do território oceânico e, também, a ilustração das estranhas realidades que poderiam surpreender os navegantes em alto mar ou, ainda, em mares desconhecidos. As sereias [e, ocasionalmente, sua contraparte masculina, sereios, tritões], assim como os unicórnios, dragões e grifos que aprecem em símbolos heráldicos [brasões]. Nas cidades marítimas, nos bares, tavernas, hotéis, o tema da sereia aparece em peças decorativas. Destas, talvez a mais significativa destas peças seja a London's Mermaid Tavern, famosa no começo do século XVI [anos 1500 d.C.] por sua clientela de literatos, escritores, artistas, incluindo Sir Walter Raleigh [1552-1618], Benjamin Jonson [1572-1637 ̶ ou Ben Jonson, dramaturgo renascentista, autor de Volpone, The Alchemist etc.] e Shakespeare. Algumas de Shakespeare peças incluem estranhas referências às sereias sem sem explicar o quê elas elas são, como em Midsummer Night's Dream [Sonhos de uma noite de verão].

Na peça, o personagem Oberon, rei das fadas, recorda uma sereia que cavalga um golfinho e canta tão maravilhosamente que as estrelas saem de suas esferas somente para escutá-la. Estudiosos acreditam que esta sereia de Shakespeare é uma referência a Mary, rainha da Escócia, que foi casada com o Delfim da França. Quando Mary perdeu a realeza, espalhou-se uma propaganda maldosa. Um cartoon de 1567, em Edinburg, retrata Mary como uma sereia, o quê, naquela época, era o mesmo que caracterizá-la como prostituta. Mulher escorregadia abaixo da cintura, como a sereia e suas artimanhas que levam um homem à destruição.


LENDAS POPULARES

Sobre esse aspecto existem lendas populares, baladas que falam de pescadores que aprisionam uma sereia, com ela se casam e têm filhos. A sereia pode parecer conformada por muitos anos mas, secretamente, alimenta a esperança de fugir, voltar ao oceano. Ela é obrigada a permanecer em terra porque o pescador fez um feitiço cujo poder se concentra em um objeto mágico. Se a sereia consegue se apoderar do objeto estará livre. Freqüentemente, esse objeto é uma capa vermelha.


MITO DE SELKIE
  ̶  São ecos do mitos antigos como as Lendas de Selkies, [do folclore das Ilhas Feroe, Islândia, Irlanda e Escócia]. Selkie é uma a mulher-foca  ̶  seal-woman . As Selkies são mulheres e focas ao mesmo tempo. Podem retirar sua pele de mamífero marinho e viver na terra em forma humana. As lendas são dramáticas: muitas vezes, o homem não sabe que sua mulher é uma Selkie; outras, é a Selkie que se vê aprisionada pelo homem que esconde sua pele de foca. [Entre os gregos, se um homem conseguia roubar o lenço de ninfa da água esta era obrigada a desposar tal homem. É um enredo tradicional, recorrente do folclore das criaturas fantásticas: apoderar-se de um de um objeto encantado para manter servil seu possuidor.]


SOBRE A ALMA DAS SEREIAS  ̶  A LENDA IRLANDESA DE LIBAN


No contexto da religião católico-cristã, diante de um ser de natureza ambígua, meio humano, meio animal, surgia complexa questão de definir: 1. se tais seres possuem uma alma; 2. se esta alma poderia, de algum modo, alcançar a salvação em Cristo. Esse problema aparece na lenda irlandesa de Liban, datada do século VI [anos 500 d.C.] mas somente registrada por escrito no século XVII [anos 1600].

Liban era uma jovem humana que sobreviveu a uma enchente. Era filha de Eochaid, rei Firbolg e da rainha Etain. Um dia, um poço sagrado transbordou e esta foi a causa da enchente. A moça foi arrastada pelas águas junto com com seu cão de estimação. Eles não foram engolidos pelas águas. A princesa encontrou abrigo em uma pequena gruta junto ao mar. Ali, rezou para a deusa Dana, a Mãe de Todos. Pediu para ser transformada em um salmão para que pudesse ser nadar, ser livre como os peixes que ela via perto de seu abrigo. A deusa atendeu o pedido e Liban foi transformada; porém, não completamente. Metade dela permaneceu com aparência humana da cintura para cima e foi dotada com uma cauda de peixe no lugar das pernas. Seu cãozinho foi transformado em um leão marinho.

Ela viveu 300 anos nos mares da Terra até que foi capturada. Um padre, chamado Beoc, à bordo de navio com destino a Roma, ouviu o canto da sereia, deteve a embarcação e convenceu a criatura a seguir com ele. Em civilização, Liban converteu-se ao Cristianismo e foi batizada. Durante mais 300 anos ela ainda viveu na Terra e quando morreu, tinha uma alma que foi direto para o Paraíso. No mundo, tornou-se uma figura reverenciada como virgem santa sob o nome de Murgelt [or Murgen, sea-born, sereia].

Mas Liban tinha nascido humana e, assim, foi considerado que tinha, certamente, uma alma humana. Resta saber se sereias nascidas sereias também têm alma humana. Esse ponto do debate conduz a um segundo tipo de estória na qual a sereia apaixona-se por um homem. Nesse caso, ou ela arrasta o homem para o fundo das águas ou busca um meio mágico para viver como uma mulher.


A PEQUENA SEREIA

No Ocidente, todas estas lendas soam familiares. Isso é o reflexo de um tipo de literatura do fantástico que apareceu em 1811 com a novela Undine, de Friedrich de la Motte Fouquet [1777-1843]. Foi um sucesso internacional. Uma ninfa da água, Undine, apaixonada por um humano, submete-se a terríveis condições de existência para ficar perto de seu amado. O enredo termina em tragédia: os dois mundos não se misturam. A estória foi adaptada para a ópera e para o balé, inspirou músicas, pinturas e inspirou o escritor alemão Hans Christian Andersen que, em 1837, publicou sua própria variação do tema em A pequena sereia.

A heroína precisa obter uma alma imortal através do sofrimento. Com ajuda de uma feiticeira do mar, ela consegue aparência humana [quarta ilustração ao lado]. Tem pernas no lugar da causa de peixe mas a cada passo que dá, sofre a dor lancinante de quem pisa sobre facas afiadas. Também perde seu canto, sua voz. Na terra firme, é muda.

Apesar de todo sacrifício, o príncipe que ela ama casa-se com outra moça, porque é humana, porque tem uma alma. A sereia poderia romper o feitiço e voltar ao seu mundo oceânico mas isso, somente se matasse seu amado. Ela tem a oportunidade mas prefere morrer lançando-se ao mar. Transforma-se em um espírito do ar que poderá, eventualmente, renascer como alma humana e chegar ao Paraíso.




SEREIA NO CINEMA  ̶  Na foto acima, a atriz Glynis Johns, sereia pioneira nas telonas, estrela de Miranda, filme inglês de 1948. A sereia protagonista é maligna e disfarça sua natureza híbrida locomovendo-se em uma cadeira de rodas.


Nesta outra imagem, a sereia como ser maligno não tem sequer o atributo da beleza. Sua aparência é um feitiço, uma ilusão de ótica. Seu objetivo: matar seres humanos. Essa versão aparece em um dos episódios da série de televisão Sobrenatural [Supernatural].

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